Feliz ano novo com seus velhos problemas





A declaração feita pela jornalista Danuza Leão criticando a manifestação de atrizes como Nicole Kidman, Zoe Kravitz, Reese Whiterspoon e Shailene Woodley que compareceram na Cerimônia do Globo de Ouro de 2018  atendendo ao chamamento da campanha Time’s Up vestindo preto para protestarem contra o assédio e  abuso sexual nas relações de trabalho ao qual esse seleto grupo de mulheres empoderadas pertencem “indústria do entretenimento”, reacende uma discussão: mulheres são responsáveis pelos abusos sexuais que elas são vítimas. A iniciativa da Campanha teve como objetivo reafirmar o direito humano das mulheres de viverem livres da violência de gênero. 

Li e reli as declarações machistas, preconceituosas e atemporais, e cheguei à conclusão que vale a pena comentar uma a uma conforme constam no Globo . Vamos lá:

1- “ o que não está claro para mim é o conceito de assédio É uma paquera? Avanços sexuais entre homens e mulheres começam sempre de um lado. Às vezes, o outro lado não quer, e isso é normal. Como definir? ”. Assédio sexual, segundo a doutrina brasileira, é o constrangimento praticado por um homem ou uma mulher (lembrando que estatisticamente as mulheres são a maioria das vítimas desses crimes) que prevalece da sua condição de superior hierárquico (relações trabalhistas ou escolares) com intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual. Não há que se confundir paquera com assédio que é uma forma criminosa de constrangimento que não leva em consideração a vontade, o direito do outro. Paquerar  é uma forma saudável de aproximação entre duas pessoas, é a sedução baseada no respeito e no prazer de ambas partes. Portanto, “avanço” sexual sem consentimento não é normal , é crime.



2-“Espero que essa moda de denúncia contra assédio sexual não chegue ao Brasil. O que aconteceu no Globo de Ouro me pareceu um grande funeral. Apesar dos vestidos lindíssimos, acho que aquelas mulheres (que foram à cerimônia de preto) foram muito pouco paqueradas e voltaram sozinhas para casa”. Aqui retroagimos em centenas de anos nas conquistas e direitos das mulheres. O Brasil ocupa a 5ª colocação de assassinatos de mulheres. Por ano, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública são mais de 500 mil casos de estupros. Bem você pode estar querendo gritar, mas aquelas atrizes, em sua maioria, são americanas, o que nossos números têm a ver com isso? Então vamos lá, a cada 9 segundos uma mulher é agredida nos Estados Unidos da América segundo Jornal The Huffington Post (EUA).Tradução: Grupo Violes. Os crimes sexuais são os mais subnotificados, ou seja, a notícia do crime não chega até a Polícia, e não é difícil de entender o motivo lendo as declarações da jornalista no Globo. Há uma lógica cruel de naturalização do comportamento dos homens e culpabilização da vítima. Mulheres devem se vestir para serem caçadas, devem ser sedutoras, porque senão voltam para casa sozinhas, mas ao serem estupradas são responsabilizadas porque não se deram ao respeito usando roupas provocativas. Moda segundo o dicionário Aurélio  “é uso passageiro que regula, de acordo com o gosto do momento, a forma de viver, de se vestir, etc.2 - Maneira de vestir.3 - Modo, costume, vontade.4 - Ária, cantiga.5 - à moda de:  segundo os costumes.6 - loja de modas:  aquela em que se vendem artigos de vestuário e de adorno.7 - passar de moda:  deixar de se usar”.  É facilmente perceptível que  denunciar um criminoso não é uma “moda”, mas sim um direito das vítimas desses crimes e dever do Estado em punir esse tipo de conduta típica. 

Por fim, conclui a comentarista “Não acho que as denúncias de assédio possam gerar uma ‘caça às bruxas’ porque são uma coisa ridícula, para começo de história. É doloroso saber que uma mulher pode fazer uma acusação e tirar o emprego de um homem. É algo pecaminoso. Mas isso é coisa de americano. Lá eles não têm noção de sexo. É ótimo passar em frente a uma obra e receber um elogio. Sou desse tempo. Acho que toda mulher deveria ser assediada pelo menos três vezes por semana para ser feliz. Viva os homens."  Uau, por onde começar. Bem, primeiramente é nojento passar em frente a uma obra ou em qualquer outro lugar público e ouvir importunações. É constrangedor andar pela rua e ficar ouvindo “ ô lá em casa...”, todos sabemos que esses  “elogios” têm conotação sexual, pois um homem ou uma mulher quando querem paquerar, fazem de forma saudável e não provocando constrangimento e importunação do sossego do outro. 

Ao contrário do que foi falado, não há uma caça às bruxas. Até porque historicamente as bruxas caçadas foram mulheres que ousaram buscar direitos iguais aos homens como Olympie de Gouge que sonhava com o direito humano da mulher na França e Joana D’Arc, jovem militar que lutou na Guerra dos Cem anos, hoje santa padroeira da França, retratada como bruxa por Shakespeare, apenas para exemplificar, a primeira decapitada e a segunda queimada viva.

O mundo não tolera mais violações de direitos humanos, e aqui registro que a luta pelo fim das violências de gênero é uma bandeira das mulheres e dos homens, assim como o machismo está presente em homens e mulheres que reproduzem padrões heteronormativos supervalorizando o papel desempenhado pelos homens em detrimento das mulheres, ouso ir além, o machismo é uma reprodução cômoda e confortável de quem sempre ocupou uma posição de privilégio  e vê diariamente que o mundo a cada dia dá um passo em direção às relações mais equânimes.


Cláudia R. Santos Albuquerque Garcia. Promotora de Justiça. Coordenadora Estadual do NEVID. Mestranda em Segurança Pública. 




Comentários

  1. Excelente e esclarecedor! Alguma dúvida ainda sobre o que é o assédio?!me recordo de ir ao supermercado para minha mãe quando mais jovem e ela me perguntar: vc demorou pq? E a vergonha de falar q tinha andado muito mais, dado uma volta enorme para não passar em frente a um bar, e umas das ladeiras da bela cidade histórica, Ouro Branco, e ouvir comentários de homens q tinham a idade do meu pai... e pergunto?Era para me orgulhar disso? Nunca me senti "valorizada" pq ao contrário de que muitos pensam... a invasão q acontece com estes "flert" é uma violência!

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    1. Beatriz, todas nós ( ou quase todas né, já que tem aquelas que sonham com essa importunação de sossego) passamos por isso. O importante é a conscientização de que esse não é um comportamento natural. Beijo grande.

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  2. Parabéns por mais essa excelente análise!!!
    Pablo Lira

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  3. Excelente, Dra Cláudia. Esclarecimento firme e claro e uma persistência incansável para reverter esse quadro de depreciação da mulher.

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